02 novembro 2019

A ressurreição do passado

A gentileza do Pedro Teixeira da Mota permitiu-me encontra este opúsculo, publicado em 1982, a seguir ao livro Os Jardins da Alvorada - pelas Edições Nova Renascença, de que foi editor José Augusto Seabra Pereira, ilustrado com uma pintura de Zita Magalhães. 
São apontamento de inestimável riqueza, iniciados em Maio de 1950 e que terminam a 14 de Janeiro de 1981.
O tema, como o nome do livro anuncia, é a cidade do Porto, a sua cidade, e o rio Douro. Mas esse é o ambiente onde tudo ocorre, o Douro Escondido, em cujo «leito tubularmente corria outro rio, à luz de outro sol». 
Porque, do que se trata, afinal, é de uma «viagem imaginária», da beleza transcendente, do mistério, da contemplação de paisagem e vida e, sobretudo, de uma visão contemporânea, como por sonho em vigília, de um outro tempo da mesma cidade e do mesmo rio, a ressurreição da passado. 
«Quantas vezes me tinha aparecido de noite uma sua rua, ou um seu recanto, tal como tinha sido noutros tempos», anuncia Dalila, na «carta (não enviada) a um historiador da cidade». 
Escrita familiar com o onírico, a realidade coeva ressurge aí, assim, como visão a anunciar estados prenunciadores de um êxtase, de que um «segundo conhecimento, pela leitura» confirma a existência.
Escrita interrogativa, segura na invectiva quanto à certeza do seu modo de conhecer, jogo de adivinhação e memória, pergunta: «quem nos dá a célere visão do passado a profecia, quem nos marca as datas predestinadas do tempo? diz, ó seguro construtor e tantas razões.»
Momentos há, nesta breve obra de 72 páginas, de puro refinamento, sensualidade solta em céu espiritual, como o da visita à Casa Amarela das Águas Férreas, onde viveu o historiador Oliveira Martins, na qual se reuniam os Vencidos da Vida e onde Antero Quental se aproximou do suicídio uma primeira vez. Ali, onde «o passado como água estava submerso nessa fonte quadrada», onde de mulheres «leves lavores ainda subsistiam apenas visíveis em rostos delidos de bichos homens de pálpebras cerradas», o rio veio ao seu encontro, encontrando-a sob a ponte, «o arco negro rendado», e eis que «a sua água como passado calado veio ao meu encontro. Em onda redonda azul e macia abraçou meu peito e dele fui possuída. Num grito de espanto e gozo sufocado.»

01 março 2018

Exaltação! Congresso, já Domingo

Exaltação do espírito, chamada das origens. Um Congresso, já este Domingo, no Porto, dedicado à sua obra. E eu arredado dela, há tanto tempo por retomar a leitura, este mesmo blog deserto, como se faltasse um pouco da alma.  Acabo de me inscrever e olho para o imenso rol dos deveres e para a infinita vontade de não faltar, dar-lhe todo o tempo que me seja possível. Nalguma dimensão haverá uma ordem de grandezas a ponderar, respeitando-nos.

08 abril 2015

Recordar Dalila L. Pereira da Costa (1918-2012)









Fico grato ao António Quadros Ferro ter-me trazido esta memória e ter-me proporcionado voltar a este espaço que reservei como homenagem a esta notável presença na cultura e no pensamento português, síntese em poética de uma oração à essência íntima do Ser. Quanto lamento que a vida me disperse, me enfraqueça de energias, me force a concentrar-me no que é o ganha pão destas viagens pelo magnífico. Obrigado, pois, do coração.

08 julho 2014

De uma longa caminhada


Tudo se interrompeu a 25 de Junho de 2013. Mais de um ano volvido foi preciso retomar caminho vindo dos atalhos por onde a alma se perde.
Regressei.
A ideia primordial não é a de ensinar, sim a de aprender.
Reuni o que julgo ser a totalidade da obra que escreveu. Mas estou disso incerto, ante a sua constante produção.
E que caminho? Primeiro, aproximar-me do seu local, a sua cidade, depois ter a luta pela sobrevivência aberto espaço para que esteja hoje a dois passos do foco irradiante da cultura que ecoou na sua sensibilidade. Depois o ter encontrado o fio de Ariana que guia os passos de quem retorna: ontem a oferta de um livro de homenagem a Fernando Fernandes, mestre de livreiros, lido noctivagamente, hoje uma descida ao espaço que foi a sua livraria, na Rua de Ceuta e ali a possibilidade de reconstituir a Nova Águia revista de que fui juntando, disperso, números avulso. Enfim, entre eles, num dedicado a Leonardo Coimbra, homenagens devidas e sentidas a Dalila Pereira da Costa. Fechou-se o ciclo que permite o recomeço. 

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Fonte da fotografia: aqui

25 junho 2013

Saudade



Criei este espaço porque queria dedicá-lo. Não que fosse um especialista, mesmo apesar por não ter acompanhado quantos têm escrito sobre a sua obra, os que conheceram a sua pessoa. Sim pela invulgaridade do que li, a excepcionalidade do sentimento que transmite. 
Há tanta extensão do seu escrito tão longe do meu ser quotidiano vulgar e tanta intensidade em alguns breves momentos que são comigo uma indizível comunhão de almas.
Uma destas noites senti o remorso de não ter vindo aqui, ou a saudade. A saudade, como desejo de união e de reintegração, da qual compôs, em 1976, com Jesué Pinharanda Gomes, uma paciente antologia de quantas a sentiram, por tantas formas que não há vocábulo que as contenha e o melhor deles chama-se saudade.
«A saudade só morre na morte (porque aí, realizando-se de todo, se anula, por consumação», escreveu com aquela presciência que lhe adveio da mística que lhe incendiava a alma.

29 março 2013

O reencontro


Criei este blog como homenagem a esta figura ímpar de pensadora. O momento criador foi carinhoso. Faltou a dedicação permanente, que caracteriza o verdadeiro amor. Sinto a falta do que não fiz, como se não me tivesse cumprido. 
Ao António Quadros Ferro devo esta fotografia [publicou-a aqui]. 
Que eu saiba de Dalila existem poucas imagens. É como se tivesse passado etérea, incorpórea, puro reflexo por este nosso mundo material.
Este fim de semana da Páscoa, propício à reflexão interior, estou a rever o que escrevi e o que quero escrever. Estou a lembrar aquilo que me tornou no que sou. O ter descoberto a sua escrita foi determinante. Não que eu me esgote nisso. Não que a espiritualidade diáfana que perpassa pelo legado que nos deixou seja a essência do meu ser. Sim porque é isso que permite a reintegração, o reencontro.

25 dezembro 2012

Entrevista - 2009

Criei o blog em sua homenagem. Tinha delineado ir dando conta de todas as leituras dos seus livros, que fui amealhando, um a um. Depois as miudezas do quotidiano, misto de vicissitudes da vida e dos encargos do ganha-pão, foram roendo o tempo, os deveres morais mobilizando a alma. Nestes dias, por ser Natal, renascemos. Graças ao António Quadros Ferro chegou-me esta sua entrevista, outorgada em 2009. Ouve-se aqui. Publico-a antes mesmo de a ouvir. Com ela a má consciência redime-se. Voltarei à sua obra, como se a uma fonte purificadora.
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O seu a seu dono: a foto foi tirada por Pedro Teixeira da Mota, como ele informa no seu blog homónimo. As minhas desculpas, a ignorância gerou a omissão.

05 setembro 2012

O Mensageiro

Leio o segundo capítulo de A Força do Mundo. Está estruturado como um diário, cobrindo dez anos de vida da autora, entre 1960 e 1970. Intitula-se O Mensageiro. Nele assinala-se a forma a visitação da alma por um ser transcendente, cuja evanescência progressivamente se clarifica a ponto de se desenhar como sendo o Anjo, «o grande Consolador», a Virgem Imaculada afinal o Espírito Santo, e sem sucessão ou distinção a Rosa Mística e com ela a evidência de uma geometria sagrada, simbólica, pela qual a primitiva «presença» se torna em «encontro» por entre o labirinto do saber revelado..
São aparições e com elas tudo ganha compreensão, o «perpétuo ultrapassar dos limites», o mundo «construído como uma rosa», em camadas sucessivas,vindo de um centro primordial, como uma força «com uma medida nova, não horizontal, mas vertical, em profundidade.»
O leitor sente, nestas linhas que têm de ser interiorizadas para que as conheça, o «júbilo secreto» com que se vive o divino nesta vida através da «alteridade», a de «um amor que se faz e se vive sobre uma falha aberta, um abismo». Tudo diverso do êxtase, que é tema do livro que albergou este capítulo, diferente porque se continuou «a viver no mesmo mundo; e no mesmo corpo de todos os dias, se bem que diferente. Pois que o corpo era possuído por essa força que ele sofria com a possessão docemente terrífica de Deus.»
Para estar neste mundo e conseguir estar com esta narrativa é preciso saber a decifração desta linguagem secreta, «esta linguagem às vezes de imagens, outras de palavras», crescendo «em espirais...em espirais sem fim», este «falar último em fusão, de alma a alma».

18 agosto 2012

Promessa e dom


A ascese como forma de aquisição do Absoluto, eis a vida iniciática de Dalila. Quando escreveu o ensaio para a revista Esprit teria ocorrido apenas «duas vezes, únicas», separadas por onze anos, aquele «número de instantes» em que, por via do «silêncio, a imobilidade, a soledade; e também a presença duma doce e brilhante luz do sol» a mística lhe surgiu. Viria a referir um terceiro no livro Instantes uma terceira.
O primeiro deles, «o instante de ouro», ter-lhe-ia ocorrido em Coimbra, na Primavera de 1938 «por volta do meio-dia, à sombra duma grande pittosporum dum jardinzinho fechado, silencioso e solitário da Casa dos Coutinhos junto à Sé Velha, então Lar do Sagrado Coração de Maria, com raparigas universitárias», na forma de «uma intensa luz, tão doce, e que não era a luz deste nosso sol», momento em que «o fora e dentro eram indiscerníveis, idênticos, num único e inseparável todo; a luz também inseparável e indiscernível da paz, silêncio, liberdade e amor; em total despojamento, esquecimento do mundo: quádrupla raiz divina, com atributos de um só e único Todo, ele inominável; em dom concedido gratuitamente».
Se o cito é porque a sua rememoração é ilustrativa da forma pelo qual a chama se lhe incendiou, «como promessa e dom supremo concedido por Cristo». Eis, copiando da sua escrita, nisso incluindo a invulgar forma de pontuar, tão típica como se assim marcasse uma outro modo gramatical de respirar o dizer:
«Que nesse instante, por ele anulou, como conhecimento-vivência, toda a realidade rodeante. Seu fim, como lento abandonar, sendo sentido como queda nessa realidade terrena. Instante concedendo um conhecimento de certa certeza absoluta, irrefutável, da existência de outro mundo e vida possível, em separação total deste; sem tempo, de antes e depois, sem espaço de aqui e além: como centro do mundo e da vida: eixo imóvel, dum mundo e vida que à volta rodam incessantes».

13 agosto 2012

Os Instantes


Para compreender a sua obra há que entender a sua vida. Contou-a na primeira pessoa num texto invulgar a que chamou Os Instantes. O organizador Ângelo Alves imaginava que respondesse a um inquérito biográfico e acabou por sentir acanhamento ante o teor das respostas que recebeu. Eliminou por isso as perguntas tal como as tinha formulado.
De uma «autobiografia espiritual se trata», narrativa não do acontecido mas do vivido, ante o conhecimento outorgado, em dever imperioso, em obrigação de partilha.
Assim sucedeu através da mística, «a ciência experimental de Deus», ela que «depois de um longo silêncio» viu ser-lhe assinalada «a missão de escritora», após anos de «leituras de mestres da vida, mais do que mestres do pensamento».
Tudo pela Fé, também pelo amor à sua Pátria. com ela sofrendo partilhadamente a agonia.
Voltaremos tantas vezes a este livro quantas as necessárias para a encontrar, autêntica.

30 julho 2012

Experiência do êxtase


Não me apetecia, por uma estranha teimosia interior, começar por aquele que é o seu primeiro livro O Esoterismo de Fernando Pessoa. Racionalizando, talvez por haver tanto sobre o poeta da Mensagem, hoje vulgarizado e à espera que o esquecimento se apiede da sua alma. Mas não era razão que me convencesse. Porque houve nesse seu interesse por Pessoa uma singularidade, como acentuou António Quadros - cuja grandeza se exprimiu em ter emprestado o esforço e o tempo a sistematizar o disperso pensamento dos que da filosofia portuguesa se reclamavam - a de ter revelado o seu lado «sedento de oculto», os aspectos «neopagãos, esotéricos, gnósticos, místicos» que João Gaspar Simões, até então o seu monumental biógrafo, havia apenas entrevisto.
De superstição, em suma, se tratava, essa forma de conhecer pelos sinais, ou de adivinhação esse saber pela esperança.
A realidade organizou-se, enfim, em torno dessa minha verdade intuída: o livro ao qual me recusava como primícias, não foi o seu primeiro escrito, foi-o sim, uma publicação em francês, editada pela revista Esprit, em Novembro de 1970 e que traria em livro em 1972, juntando-lhe outros escritos, e a que chamaria A Força do Mundo. Encontra-o aqui quem o quiser adquiri na íntegra. Ao alto a primeira página.
Eis o retorno ao lugar interrompido. Foi em Novembro do passado ano [aqui]